ARTIGOS

Querido Francisco

Por MARIA CLARA BINGEMER
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Publicado em 04/05/2025 às 09:09

Alterado em 04/05/2025 às 09:09

Parece mentira que não veremos mais seu rosto bondoso e tantas vezes brincalhão. Ultimamente andava diferente, mas os olhos não perderam a luz e a vivacidade, expressando o que os lábios só conseguiam fazer com dificuldade: afeto, proximidade e até a proverbial sensibilidade cheia de humor que marcou seus 12 anos de pontificado. Como quando viu a senhora que frequentava assiduamente a praça levando flores amarelas e disse: Brava!

Agora fica conosco sua memória, nossa saudade e o extenso, imenso legado por você deixado. O choque da notícia de sua partida foi sendo amenizado ao longo destes dias em que tentávamos fazer o luto da perda que insistia em misturar-se com a gratidão e o louvor a Deus pelo dom que foi você para esta querida Igreja. E também e não menos para um mundo que parece perder o rumo e a cada dia aprofunda o que você tão sabiamente nomeou como “uma terceira guerra mundial em capítulos. “

Eu o conheci ainda Bergoglio e em nossa amada Buenos Aires. Não ainda Francisco de Roma. Recordo-me de sua sisudez e seriedade, em nada parecidas com o sorriso permanente e carinhoso que marcou seu pontificado, Mas já então, em meio a comentários de todo tipo sobre sua pessoa, sentia destacar-se a admiração por sua austeridade. O cardeal que caminhava a pé ou tomava ônibus e metro para chegar de surpresa às comunidades pobres a fim de celebrar com os padres “villeros”. O prelado que telefonava a uma comunidade religiosa e chamava por uma certa irmã. E que perguntado por sua identidade respondia: Jorge. Quando a pergunta era insistente: Que Jorge? Respondia: Jorge Bergoglio, causando reboliço e agitação na comunidade de irmãs que não esperavam que seu arcebispo adotasse um estilo tão informal para comunicar-se com uma delas.

Assim aconteceu também quando de sua eleição à sé de Pedro. Seus telefonemas, cartas escritas de punho e letra, mensagens personalizadas confirmavam a presença do Papa com sua marca mais característica: “cercania”, termo de língua castelhana que em português se traduz por proximidade. Mas que é mais que isso. Se trata de uma proximidade afetiva e carregada de carinho, livre e abertamente demonstrado.

Parece que você adotou desde o início o estilo que recomendou a todos para construir uma Igreja em saída. Como orientação para que isso acontecesse, recomendou algo inusitado> “Hagan lío” ou seja, “Façam agitação, criem movimento”. A pessoa do Papa era a primeira a fazer esse movimento que desconcertava e surpreendia por sua simplicidade, proximidade, cálida afetividade. E novamente, humor denunciado pelos olhos brejeiros e o sorriso contagiante.

Assim fomos sendo conquistados e quando percebemos estávamos a cada dia pendentes da novidade que iria nos surpreender desta vez. Qual seria sua ideia, sua proposta, sua criatividade que chamaria a atenção do mundo e da Igreja para a boa notícia da qual era responsável? Entre encantados, alegres e estupefatos fomos acompanhando e sendo ensinados

. Por exemplo sua ida a Lampedusa e Lesbos e o inflamado discurso que aí você pronunciou, voltando a atenção do mundo inteiro para a tragédia dos migrantes e a trágica ‘globalização da indiferença”. Em seguida, lemos sua encíclica Laudato Si, e nos vimos diante de um novo capítulo da Doutrina Social da Igreja, celebrada pelos fiéis e muito, intensamente, por intelectuais agnósticos e cientistas céticos. Aprendemos com você que tudo está interligado e nosso destino está atrelado ao destino de todos os outros e de toda a criação.

Sua comunicação com os jovens foi outra surpresa que mostrou ao vivo e em cores o que você queria dizer com “cultura do encontro”. No Rio de Janeiro em 2013 você veio e depois de burlar a segurança, andar de carro comum com os vidros abertos, entrar nas comunidades mais pobres e tomar café, levantou uma praia de Copacabana com milhões de jovens falando em português palavras de ordem que eles repetiam entusiasmados como “Botar água no feijão” . Depois com um leve sorriso disse ao jornalista que falava da rivalidade entre brasileiros e argentinos: “O papa é argentino, mas Deus é brasileiro”. Em Lisboa aconteceu algo parecido com a multidão de jovens gritando com você que a Igreja era de “todos, todos, todos”.

Nos últimos tempos, acompanhando sua doença, angustiados e esperançosos, nos pareceu que você ia conseguir outra boa surpresa. E quando apareceu em público no domingo de Páscoa, abraçando a praça cheia de gente, abençoando a todos e com enorme esforço sussurrando poucas palavras, acreditamos que sua convalescença progredia.

Nosso despertar na segunda feira foi chocante e muito triste. Choramos e sentimos profundamente. Mas ao recordar tudo que foi feito, dito, vivido, padecido e entregue, entendemos que naquela Páscoa seu único desejo era abraçar-nos a todos. E conseguiu fazê-lo. Um gesto derradeiro de sua paternal ternura que consola o sentimento de orfandade que em todos nós passou a habitar.

Muita saudade, querido Francisco. Valorizaremos seu legado. Levantaremos alto suas bandeiras. E continuaremos com o melhor de nossas forças a Igreja em saída, pobre e para os pobres que você tanto desejou. Abençoe-nos sempre, não deixe de acompanhar-nos. Por aqui, não rezamos mais por você, mas com você, na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo que você já vive em plenitude. Amém.

Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio

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