ARTIGOS
A tocha bruxuleante
Por ADHEMAR BAHADIAN
Publicado em 30/03/2025 às 09:38
Alterado em 30/03/2025 às 09:38
A tocha da Estátua da Liberdade, símbolo da Democracia americana, oscila num "apaga-não apaga” jamais visto ou sequer pressentido.
Se ainda tivéssemos dúvidas sobre o autoritarismo que ronda o governo Trump-Musk, a prisão em praça pública de uma estudante turca, algemada e levada pelas autoridades imigratórias, terá sido a pá de cal na fantasia do MAGA. A América não pode nem deve sequer deixar supor que sua grandeza se confunde com o autoritarismo fascista ou stalinista.
A cena filmada e exibida mundo afora lembra os filmes de Costa Gravas sobre os terríveis anos da ocupação soviética de Praga. Além de grotesca, a atitude das autoridades americanas foi imediatamente aprovada pelo vice-presidente Vance, que parece se especializar em tornar o inverossímel ridiculamente aceitável.
A prisão da estudante de doutorado em Universidade dos Estados Unidos teria sido motivada por artigo publicado faz algum tempo sobre o direito do povo palestino a ter um Estado soberano.
Felizmente, o Poder Judiciário sustou temporariamente a medida. Aumenta desta forma o desafio aberto por Trump-Musk aos direitos elementares dos cidadãos admitidos a ingressar nos Estados Unidos da América de acordo com as regras vigentes daquele país.
Não se deve porém respirar aliviado. A crise autoritária dos Estados Unidos sobe de nível e pretende desafiar o poder judiciário. Recentemente, Trump proibiu o Executivo americano contratar escritórios de advocacia que, segundo ele, teriam hostilizado as pretensões tirânicas, sejam hoje ou no passado recente.
Trump conta com o acovardamento da Suprema Corte Americana pelo fato de nela a maioria dos juízes serem considerados conservadores.
O desafio à Suprema Corte parte de uma visão distópica do que seja conservadorismo, confundindo-o com o arbítrio e com a ignorância dos princípios gerais do Direito.
É a mesma rationale autoritária que permite a Orban fazer da Hungria uma ditadura de tipo “moderna" onde as eleições não são eliminadas, mas o poder judiciário se torna uma mão subsidiária do ditador que governa indefinidamente.
Trump não esconde sua “inveja" de Órban e tem por ele ostensiva admiração, da mesma forma que defende os métodos de Putin e do ditador da Coréia do Norte, cujo nome não pretendo me dar sequer o cuidado de escrever.
Acho que o fenômeno que estamos a ver nos Estados Unidos da América é particularmente assustador porque Trump consegue convencer parcela considerável de seu eleitorado que a tão decantada MAGA não fere de morte a Democracia.
Os disparates abusivos que estamos a ver serem consumados por Trump no cenário internacional, todos eles ao arrepio do Direito Internacional e de tratados livremente firmados pelos Estados Unidos da América, adquirem cada vez mais uma “aquiescência” não só do eleitorado americano, mas também de “correntes ideológicas” supostamente afinadas com a Democracia.
A indiferença com que Trump “monetariza" a política externa de seu país em que todo apoio é suscetível de ser “gratificado” com um naco de território ou de terras raras é um brutal incentivo à uma diplomacia parasitária em que o único princípio válido é a exclusiva vantagem do mais forte.
As peripatéticas intervenções de Musk na demolição do Estado de bem-estar social é a transferência para o plano interno da administração americana do mesmo parasitismo em que as maciças demissões de funcionários públicos contribuem apenas para o corte de imposto de renda dos mais ricos para permitir o crescimento do lucro.
Este “angu” de formulações jurídicas estapafúrdias não é nem inocente nem muito menos uma coincidência. No projeto MAGA, os Estados Unidos da América são apresentados aos eleitores como um país espoliado por seus próprios aliados, afirmação fácil de comprovar com o tratamento dispensado por Trump ao Canadá e à Europa.
Diante deste quadro que esbocei em apenas em seus aspectos mais evidentes, a Democracia perde o seu principal sustentáculo, a lei e sobretudo a Magna Carta.
Decorre daí, como é óbvio, que o Poder Judiciário americano se defronta com a maior hostilidade jamais vista. A política autoritária em gestação é apresentada como a “restituição da grandeza roubada” dos Estados Unidos da América.
Para complicar, temos que prestar bem atenção que a doutrina Trump tem apoio declarado de um movimento internacional em que forças regressivas se reforçam umas as outras. Umas mais ostensivas do que outras porque, queiramos ou não, a política de Trump beneficia sobretudo os super-ricos.
Não há de parecer abusivo que aqui recorde o “imbroglio" entre Musk e as autoridades judiciárias brasileiras em que Musk procura sensibilizar a justiça americana para a “indevida” interveniência do Supremo Tribunal Federal contra a “liberdade de expressão” das big techs americanas. Não são poucos os que caem nesta cantilena de Musk aqui no Brasil. E põem a culpa no nosso Supremo Tribunal Federal.
A hora não é só dos ratos. De mescla, vem a mão do gato.
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado