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Polícia da morte: é disso que o povo gosta?

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Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 05/12/2024 às 17:52

Alterado em 05/12/2024 às 17:52

O soldado Luan Felipe Alves Pereira, da Polícia Militar de São Paulo Foto: reprodução

Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, o soldado Luan Felipe Alves Pereira joga o motoboy Marcelo do Amaral, 25, de uma ponte na Zona Sul de São Paulo. Em princípio, tudo normal na PM. Afinal, essa não seria a primeira atrocidade cometida por Luan, lotado na temida Rondas Ostensivas com Apoio de Moto de São Paulo (Rocam). O soldado esteve envolvido num caso de execução em 2023, quando um motoqueiro teria desobedecido a uma ordem de parada e fugido para a comunidade de Piraporinha. Em resposta, foi executado com 12 tiros.

Luan parece um típico caso de criminoso fardado; mas nem de longe é um caso isolado. Dias antes do motoboy ser arremessado da ponte, Gabriel Soares, 26, que furtava produtos de limpeza num supermercado de Jardim Prudência, foi executado com tiros nas costas pelo policial Vinicius de Lima Brito. Sem descaracterizar a conduta delituosa das vítimas, as atrocidades em cascata produzidas pela polícia de Tarcísio de Freitas (Republicanos) saltam aos olhos. Para PM, qualquer delito, ainda que de baixa gravidade, deve ser assimetricamente respondido por uma polícia que julga, pune e mata, sob a outorga do governador.

Segundo dados compilados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público de São Paulo (GAESP/MPSP), os assassinatos cometidos por policiais militares em serviço em São Paulo cresceram mais de 90% nos dois primeiros anos do governo Tarcísio. A considerar aqueles também protagonizados por policiais fora de serviço, o aumento dos homicídios ultrapassa o patamar de 150%. Esses números revelam que a polícia da morte executa uma política institucional, na qual a violência não é mero desvio ou desajuste, mas uma estratégia de governo.

A política de “baixar o cacete” perpetrada por Tarcísio e por seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, é evidente. Sob as rédeas frouxas de Derrite, um ex-policial militar já investigado por mais de 15 homicídios, a polícia paulista gera saldos operacionais, likes nas redes sociais e muito impacto midiático. Neste espetáculo mórbido, bem ao gosto da extrema direita que avança no país, o dito “cidadão de bem” sacia sua sede de “justiça” com a carcaça de mais um jovem preto-pobre morto.

Em março de 2023, quando a Operação Verão produziu a primeira grande leva de mortes da PM paulista, Tarcísio, então recém empossado governador disse que qualquer eventual descontente “pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí". Subsequentemente, a Operação Escudo chegou a ser denunciada por associações de direitos humanos na 55ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, Suíça. Mas nada aconteceu.

Sem reação efetiva dos órgãos de controle, em particular o Ministério Público e o Judiciário, a polícia paulista parece ter incorporado a lógica amigo vs. inimigo proposta por Carl Schmitt, o “jurista de Hitler”. Igualmente, amparada por um legislativo fisiológico, cujos votos muitas vezes derivam do controle territorial exercido por grupos criminosos (inclusive fardados), a segurança pública é subvertida em atividade de guerra, na qual o “inimigo” deve ser destruído ao arrepio da moral e do direito. Na ética belicosa da PM paulista, matar é vencer.

A polícia é o Estado nas ruas e seus agentes representam a lei. Por isso, devem atuar dentro da legalidade. Uma polícia treinada e bem equipada, adequadamente remunerada, com protocolos rígidos e alinhada à ordem jurídica não atira e mata a esmo para alimentar seus prazeres patológicos e ânsia de poder de seu governandor-comandante. Por isso, é nítido que mais do que uma desarrumação na hierarquia da polícia, o governo Tarcísio parece ter dado “passe livre” para que a PM reedite a política do “tiro na cabecinha” do ex-governador do Rio, Wilson Witzel. Militar de formação, Tarcísio está aplicando uma política de morte, que produz uma limpeza étnico-racial pautada em níveis altíssimos de psicopatia e ódio social. Por quê?

Além de popularidade imediata, a necropolítica do governador rende dividendos políticos e desvia a atenção de outras questões importantes, como a crise hídrica da Sabesp, as quedas de energia da Enel, a privatização de escolas públicas ou a disseminação de escolas cívico-militares, nas quais crianças são adestradas como soldados e não educadas como cidadãs. Com sua fala mansa e seu jeito calmo, em oposição ao perfil tosco de seu padrinho político, Tarcísio é a principal aposta da “direita” brasileira para 2026, quiçá encabeçando uma chapa secundarizada por Michelle Bolsonaro. Com popularidade na casa dos 70%, Tarcísio parece agradar aos paulistas, motivando a pergunta: é disso que a direita gosta?

 

Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/UERJ

Renata Medeiros de Araújo, mestre em Ciência Política. Advogada

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