ARTIGOS

O pecado de todos nós

Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]

Publicado em 01/12/2024 às 08:01

Alterado em 01/12/2024 às 08:01

Às vezes, penso que a desagregação social e política que estamos a viver seria uma espécie de Covid longo. Se há cepas que podem atacar o coração, não haveria outras a sabotar a alma?

Se assim fosse, quem sabe descobriríamos uma vacina e esqueceríamos o assunto. Mas, na realidade o problema parece muito maior e não se resolverá sem que compreendamos para onde estamos indo.

E estamos indo para trás. Rigorosamente, a cada dia surge uma ideia ou um movimento que nos assusta pela mediocridade, pela violência ou pela ignorância. Ou as três juntas.

Já nem me refiro mais a Trump, porque ele se ultrapassa a cada dia e nos oferece um Ministério nos Estados Unidos da América que sinaliza tempos ásperos onde a primeira vítima é a Ordem seja ela política, moral ou social.

Estamos a nos apequenar. Estamos a regredir aos tempos dos pitecantropos e a abandonar os mais comezinhos princípios de civilidade.

Sequer conseguimos valorizar nossos movimentos restauradores em direção a um mundo mais solidário. A reunião do G-20 aqui no Rio de janeiro, reconhecida mundo afora como uma importante retomada de um diálogo entre as maiores economias do universo, desfaz-se ao desaguar num debate sobre o aborto na principal Comissão da Câmara dos Deputados.

O que particularmente me sensibiliza numa discussão como a que assistimos é a tendência a jogar sobre o outro todas as mazelas de que nos queremos livrar. A racionalidade do debate se perde em argumentos a miscigenar conceitos de natureza religiosa com raciocínios científicos ou jurídicos.

A primeira regra de qualquer religião que honre seu nome é a tolerância com a diversidade e em especial a distinção entre o espiritual e o mercantil.

Sempre bom lembrar o ensinamento de Cristo sobre o poder temporal e espiritual. Entre o que é de Cezar e o que é de Deus. Nunca foi bandeira de nossa história a mistura entre o religioso e o político.

Nunca nos permitimos confundir Democracia com Teocracia, e, desta forma, sempre tivemos uma sociedade multi-religiosa, multiétnica, onde convivem em respeito seitas e crenças que em outros países ainda hoje são substratos de conflitos armados.

O fato é que estamos a regredir nesta sabedoria e tentamos reviver tríades como Deus - Pátria - Família que informaram o integralismo brasileiro e muito cedo tentou imiscuir-se com o poder temporal, no que foi rechaçado por nossa sociedade.

Sei que muito do que digo aqui, pode ser considerado desrespeito ao foro íntimo das pessoas. E aqui, para esclarecer definitivamente minha posição, reitero que o que acho que está a acontecer é uma confusão indevida entre os poderes terrenos e espirituais. Pior: acho que nos últimos trinta anos a defesa do sistema econômico se beneficia de uma crescente confusão entre conceitos da moral, dos direitos humanos e dos direitos políticos e sociais.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a clivagem entre concepções divergentes do progresso humano levou-nos a aceitar nos últimos cinquenta anos ideologias que muito aprofundaram o fosso entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Dentre elas, a mais nefasta que hoje pretende ressurgir com nova roupagem é o neoliberalismo econômico responsável pelo desmonte de redes de proteção aos mais necessitados, com as consequências que estamos a observar, dentre as quais, uma das mais importantes é o ataque ao Estado como instrumento "pernicioso" da riqueza das nações.

A associação espúria entre Trump e Musk é apenas uma primeira tentativa de fazer com que a geopolítica mundial seja um conúbio entre as mega empresas e o governo americano.

Deste conúbio pode-se esperar um monitoramento da vida política e econômica de nossas nações nos mesmos moldes segregacionistas que nossos pais e avós viveram antes da Segunda Guerra Mundial.

Neste contexto, o exercício que se impõe aos países que efetivamente pretendem preservar e melhorar nossas vidas e de nossa descendência neste planeta é retomar um diálogo sem ameaças e discriminações como nossos país nos ensinaram ao criar as Nações Unidas e sobretudo a Carta das Nações Unidas. O Brasil estava lá. Na primeira fila.

A reunião do G-20, no Rio de Janeiro e sua declaração de objetivos foi a tentativa mais sensata diante do retrocesso alimentado pelo lucro sem limites defendido pelo neoliberalismo e a mais promissora para nos levar a um mundo menos atemorizador.

Nada disso se fará porém sem coragem e sem a convicção de que o destino de nossa vida neste planeta é, sim, uma dádiva de Deus, mas nosso futuro será fruto de nossa capacidade de enfrentarmos nossa evidente tentação de sermos os lobos, as hienas de nós mesmos.

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

Deixe seu comentário