ARTIGOS

A casa da minha avó

Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

Publicado em 31/08/2024 às 13:33

Alterado em 31/08/2024 às 13:33

Apesar de haver vivido no exterior alguns esparsos anos e um ano em São Paulo não considero moradia nem chamo de casa a nenhum outro lugar em minha já longa vida senão a esta casa antiga e acolhedora que pertenceu a meus avós. Já eu pequena meus pais iam viajar e me deixavam com minha avó, com quem entretinha uma relação afetiva profunda. Subia e descia as escadas da casa, entrava em seus inúmeros quartos, andava de balanço no terraço de cima e de trás, ajudava Alice a portuguesa a fazer bolos na ampla cozinha.

A casa da minha avó era grande e misteriosa, com portas onde menos se esperava e armários em espaços inusuais. Em alguns era proibido mexer e minha curiosidade infantil ardia de desejo de mexer justamente ali onde o interdito e a transgressão temperavam a vontade coibida. Na varanda de baixo da frente minha avó sentava-se quando caía a “fresca” da tarde tomando suco de laranja. E pelo muro, que naquele tempo de segurança e sossego era baixo, conversava com os vizinhos que por ali passavam e se detinham. Muitas vezes eu vinha fazer-lhe companhia.

Quando morreu meu pai eu tinha nove anos de idade e morávamos, minha mãe, ele e eu em uma casa na mesma rua na esquina de cima. Meu avô então fez obras na casa e no andar de cima da garagem, construiu e reformou um quarto com banheiro para minha mãe e eu. Igualmente um escritório para que eu pudesse estudar. E ali transcorreu o que restava da minha infância, toda a minha adolescência até que aos 18 anos comecei a namorar o argentino que hoje é meu marido.

Desde a primeira vez que ele pisou na casa da minha avó enamorou-se das duas. Minha avó acabava de ficar viúva e queria vender a casa. Meu marido rebelou-se contra isso, disse que essa casa tinha que ficar na família. Ele havia acabado de perder o pai e dispunha de algum recurso. Com este comprou a parte do imóvel que não pertencia a minha mãe. E tornou-se mais um habitante da casa que fora minha desde sempre e que a partir daí passou a ser também nossa. Aqui nasceram e cresceram meus filhos, brincaram meus netos, frequentaram nossos amigos.

Estará o leitor a perguntar-se por que faço uma crônica tendo como personagem a casa da minha avó. Vários argumentos justificam essa escolha. Primeiro, e mais que todos, o arquiteto que elaborou o projeto e acompanhou a construção da mesma? Lucio Costa. Primo irmão de minha avó, presenteou-a quando de seu casamento com desenhos e plantas da casa que se construiria no terreno que meu avô acabara de comprar em um bairro de Laranjeiras ainda com poucas construções. Recordo-me que Lucio nos visitava várias vezes e a cada vez dizia que éramos – dos que moravam em casas por ele projetadas – os que mais respeitavam seu projeto original e sua estética.

O outro argumento – mais recente – foi o fato de que há alguns anos fomos visitados por quatro arquitetas da UFRJ que elaboravam um livro sobre as casas de Lucio Costa em Laranjeiras. Era uma alegria para nós vê-las subindo no telhado a fim de fotografar a assinatura de Lucio Costa, fotografar vários ângulos do espaço, procurar a melhor iluminação etc. O livro, finalmente, ficou pronto e fomos convidados para o lançamento.

Foi uma emoção ver o belo produto daquele longo trabalho. Nossa casa, com o desenho original de Lucio Costa, figura na capa do livro que se intitula Casas Cariocas de Lucio Costa, da Editora Paisagens Híbridas. O interior, em papel “couché”, dedica um bom espaço a nossa casa e às outras projetadas pelo arquiteto, amigo e parente na cidade do Rio de Janeiro. As belas fotos destacam os melhores ângulos que a iluminação permite. E os desenhos testemunham o traço do arquiteto que marcou a história do país.

Voltando do lançamento, olhei para a casa da minha avó e meu olhar era diferente. Sentia-me habitando em meio a um lugar sagrado, que abrigou tantas gerações e cujas paredes transpiram vida, luta, amor e tantas emoções. Recordamos, meu marido e eu, as tantas e infinitas vezes em que nossos filhos insistiram para que saíssemos daqui, que nos mudássemos para um apartamento menor e mais moderno, em outro bairro mais valorizado e seguro.

Ficamos. Acreditamos na história e na memória. Valorizamos os legados. Não estávamos sozinhos. Conosco habitavam e habitam vários outros: os mais de 11000 livros que enchem paredes e estantes, as fotos que testemunham a passagem do tempo e a nossa inscrição nele. A escada de azulejos que se projeta em curva, as vigas que decoram os tetos das salas, e os arcos, os arcos, marcam passagens. A pesada porta principal em madeira de lei encravada na pedra entalhada tem um porte nobre e imponente. Tudo fala de um tempo em que minha avó reinava da sala à cozinha e por onde agora passam alunos, amigos, família, dando seguimento ao bendito ato de habitar e viver.

Pareceu-me naquele momento escutar o piano onde minha avó enchia as noites com chorinhos de Ernesto Nazaré e outras peças de seu repertório. E tive a convicção de que moro em uma casa construída sobre a rocha, como diz o Evangelho de Mateus 7, 24-25: "Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e bateram com força contra aquela casa, e ela não desabou, porque tinha sido construída sobre a rocha.”

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Crônicas de cá e de lá” (Edições Subiaco), entre outros livros.

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