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'Deus está Morto!' Viva Deus!

Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 21/08/2024 às 18:35

Alterado em 21/08/2024 às 18:35

“Deus está morto!” Com esse paradoxo, Nietzsche (1844-1900) mostrou que a religião havia perdido a centralidade que tivera no Ocidente. Para o filósofo, o avanço das ciências, a laicidade do Estado e a razão iluminista haviam deslocado a religião para a periferia das formas legítimas de conhecer e interpretar o mundo. Foi um choque! Mas Nietzsche não conhecia o Brasil.

Uma consulta ao site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aponta que cerca de 4.500 candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador no Brasil carregam denominações religiosas em seus nomes eleitorais. Eles são predominantemente evangélicos, com nomes de apóstolo, bispo, pastor etc. No Rio de Janeiro, há quase duas dezenas desses candidatos, alguns com denominações inusitadas como Abençoado e Dafé. Mas, se o Estado é laico, o que motiva a religiosidade explícita desses candidatos?

O Censo/IBGE-2022 aponta que os evangélicos cresceram 61,5% em relação a 2010. Projeções apontam que serão maioria no Brasil por volta de 2032. Mais ágeis e descentralizados, eles estão em todos os recantos do país, em particular nas periferias das grandes cidades, embora seu crescimento também seja notável entre os mais abastados. Os bolsões periféricos que resultaram da urbanização desordenada, combinados com a falta de políticas sociais universais e com teologias utilitaristas que valorizam a riqueza, alimentaram antigas e novas expressões do cristianismo, nas quais Deus, não o Estado ou a ciência, ampara a vida das pessoas.

Outro fator importante é a facilidade com a qual os evangélicos incorporam a modernidade. Se o barato é rede social, eles transbordam canais, blogs e mensagens com a palavra de Deus. Se a garotada curte um agito (entre jovens com até 30 anos os evangélicos já são a maioria, batendo os católicos por 30% a 26%), eles celebram Deus ao som de funk, rap e sertanejo, sem contar o bom e velho rock’n’roll. Se o que vale é a turma, a patota, eles possuem grupos jovens, que aglutinam a garotada (quase) sempre dentro dos limites morais de cada igreja. Afinal, o conservadorismo social e político tende a caminhar junto aos evangélicos, quiçá uma herança das primeiras igrejas presentes no Brasil, como batistas e metodistas, hoje reforçada e atualizada por neopentecostais e outros segmentos.

É justamente neste ponto que fé e política se encontram. Influenciados pelo protestantismo ultraconservador norte-americano, os evangélicos tendem a condenar o uso recreativo de drogas, rejeitar manifestações LGBTQIA+ e repelir práticas como aborto, controle de natalidade e eutanásia.

Predominantemente conservadores nos costumes, tendem a obstar pautas como jogos de azar, relações de gênero e outros. Também costumam adotar certo distanciamento dos partidos e organizações de esquerda, de modo que temas como lutas de classes, empoderamento popular e revoluções muitas vezes são tidos como anticristãos. Paradoxalmente, contudo, muitos fecham os olhos contra a repressão de policiais e milicianos contra os mais pobres, além de apoiar pautas nitidamente anticristãs, como a difusão das armas na sociedade. O que sustenta esse apoio tão contrário aos ditames religiosos? Difícil dizer...

A ideia de que “outro mundo é possível” não é bem vista para grande parte destes fiéis. Identificados com a pauta liberal do Estado mínimo, tendem a valorizar mais a ordem do que a liberdade individual, mais a livre iniciativa do que a universalização de políticas públicas, hoje um tema central nos debates sobre a democracia. Mais organizados e aguerridos, os evangélicos fizeram da conquista do Estado um meio para difundir suas visões de mundo. Muitas igrejas e líderes religiosos indicam abertamente pautas e candidatos para seus fiéis, orientando o voto. Macedos e Malafaias produzem milagres eleitorais. Desde os anos 1990, a ‘bancada evangélica’ é o eixo político da direita religiosa, também composta por católicos e judeus conservadores. Com protagonismo crescente, estão cada vez mais articulados com outras bancadas temáticas, como a bancada da bala (segurança) e a bancada ruralista (agrobusiness) e a bancada empresarial e financeira (elites econômicas).

Muito se questiona se a crescente participação de evangélicos na política é uma limitação para a democracia. No Brasil, o apoio deste segmento ao bolsonarismo e suas pautas negacionistas e antidemocráticas chamou a atenção de estudiosos e da mídia, apimentando o debate. Em princípio, não há dados que sustentem que os evangélicos são avessos à democracia. Afinal, eles formam um todo heterogêneo, com várias matizes e nuances. Todavia, é certo que trazem elementos novos e desafiadores. Se o Estado laico foi idealmente responsável por políticas públicas aplicáveis a todos os cidadãos, independente de credos religiosos, a ideia de um ‘Brasil cristão’, de feição fundamentalista, acende o sinal amarelo contra a laicidade, recolocando Deus no centro dos debates políticos. Deus está morto? Na política brasileira, não. Então, viva Deus!

Lier Pires Ferreira,Cientista Político.
Renata Medeiros de Araújo, Advogada.

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