ARTIGOS

Adélia Prado: a teopoética premiada

Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

Publicado em 16/07/2024 às 12:38

Alterado em 16/07/2024 às 12:38

Travei conhecimento com a poesia de Adélia Prado há muitos anos, quando li o que sobre ela escreveu Carlos Drummond de Andrade em sua coluna do Jornal do Brasil. Corria o ano de 1975, mais exatamente o dia 9 de outubro, quando o poeta de Itabira saudou cheio de entusiasmo a jovem de Divinópolis: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”.

Ao longo de minha vida de mulher, mãe de família, teóloga e professora fui lendo e saboreando os versos e depois a prosa dessa poeta que é a maior de todas que está viva hoje no Brasil. Escrevi sobre ela. Orientei dissertações e teses sobre seus escritos. Vi-a em pessoa somente uma vez. Era então coordenadora do Centro Loyola de Fé e Cultura da PUC-Rio. Convidei-a para vir falar em uma noite. Ela veio para nossa grande alegria. Saiu de Divinópolis acompanhada pelo marido José (Zé) e deleitou a todos que enchiam o auditório com sua deliciosa fala mineira cheia de simplicidade, profundidade, inspiração.

O que mais me encanta em sua poesia é a magia inspirada e inspiradora com a qual é capaz de harmonizar toda a beleza existente no mundo com a profundidade mais inefável do mistério de Deus. Sabe falar do corpo e suas razões enquanto transborda espírito nas letras que saem de sua pena. Ao mesmo tempo em que descreve seu simples cotidiano de mãe de filhos que chama o cachorro batendo o osso no prato louva a corporeidade de Deus em Jesus Cristo que, como um fruto na árvore da Cruz desvela o mistério da Encarnação onde Deus tem um corpo, nosso corpo, assumido pelo Filho que é Verbo, Palavra.

Com Adélia, a transcendência mais elevada passeia à vontade e com gosto pelo barro e pela finitude, iluminando o que é obscuro e escondido, assumindo o que é sombrio em confiança na Luz que ilumina a todo aquele que vem a este mundo.

Adélia em seus poemas que afirma serem inspirados e dados por Deus revela igualmente que quando o poema vem, há que obedecer àquele que é o Senhor da Palavra e de sua vida. Não há como fugir ou escapar. E o que brota em forma de verso ou prosa poética é pura vida, fome e sede de vida, gratuidade e graça, louvor e gratidão. A poeta declara esse apetite vital que a possui, quando escreve: “Não quero a faca nem o queijo. Quero a fome.”

Dessa fome pela vida em todas as suas dimensões é feita a poética de Adélia, que a própria afirma girar em torno de uma tríade: Deus, sexo e morte. “É em Deus, sexo e morte que penso todo dia”. E sendo o que escreve fruto da inspiração divina à qual não pode negar-se a obedecer, a poesia adeliana tangencia a profecia, quando o profeta é possuído pelo Espírito e tem que falar, tem que anunciar as coisas que lhe foram reveladas pelo Altíssimo. E ainda que fale em primeira pessoa, pontua seu discurso com: “Assim diz o Senhor”, “Oráculo do Senhor” para deixar evidente que é Deus quem fala nele e através dele. É Deus que pode ser ouvido na poética de Adélia Prado.

Assumindo-se publicamente como católica e praticante, Adélia traz para dentro de toda a sua obra, tanto para a poesia como para a prosa, a experiência de fé que é a sua, além de uma relação profunda com o mistério de Deus e o entrelaçamento desta fé e desta espiritualidade com seu cotidiano de mulher, dona de casa, esposa, mãe de filhos, intelectual e escritora. Poeta. Pois não é a poesia a fusão de todas as expressões artísticas, inclusive da arte da Palavra? Não precede a poesia a mesma filosofia, estimulando a razão a partir da expressão da beleza indomável que permite à finitude tocar o Infinito?

Possuída pela convicção profunda de que “Deus não a fez da cintura para cima para o diabo fazer o resto”, Adélia não cessa de redimir em seus versos o corpo humano, em sua busca incessante de comunhão com Deus: “É inútil o batismo para o corpo... / O corpo não tem desvãos, / Só inocência e beleza / Tanta que Deus nos imita / E quer casar com sua Igreja / E diz que os peitos de sua amada são como os filhotes da gazela.”

Como nos recorda seu amigo e comentador Frei Betto, o cristianismo é por excelência a religião da economia dos corpos, pois no batismo nosso corpo é lavado no Sangue de Cristo. Na eucaristia, ele se nutre do Corpo de Deus. No matrimônio, “numa só carne” os corpos se fundem no amor que transubstancia o carinho em liturgia e a sexualidade em fonte prazerosa de vida. Toda a poética adeliana é permeada por essa visão sacral da corporeidade humana.

Denunciando o embuste que fez tantas gerações de cristãos pensarem que deviam ignorar o próprio corpo para aproximarem-se de Deus, Adélia canta ao Crucificado na Festa do Corpo de Deus: “E teu corpo na cruz suspenso / E teu corpo na cruz, sem panos: / Olha para mim. / Eu te adoro, ó salvador meu / Que apaixonadamente me revelas / A inocência da carne.”

Muito recentemente nós todos que amamos essa poeta de Divinópolis fomos duplamente agraciados com as duas premiações a ela outorgadas : o Prêmio Machado de Assis e o Prêmio Camões. O primeiro é o mais importante das letras no Brasil e o segundo é a mais alta premiação no âmbito da literatura em língua portuguesa. Do alto de seus 88 anos, a poeta mineira, após um longo período de deserto onde se ausentou da escrita, está prestes a publicar um livro cujo título não pode ser mais bíblico: Jardim das Oliveiras. E nesse momento recebe as duas premiações.

Em Adélia é premiada a Teopoética, essa área de estudos e escritos na qual a teologia, que é discurso sobre a fé, interage e dialoga com a estética, em todas as suas formas: literatura, poesia, artes plásticas, música. Não é verdade que em Adélia Prado, a Teopoética mesma é premiada? E não se pode afirmar que essa mesma Teopoética recebe assim o maior incentivo possível para seguir abrindo e batendo asas, levantando voo, aleteando movida pelo Espírito que sopra onde quer recitando as belezas da vida e da criação de Deus?

Adélia, com sua tríade sagrada: Deus, sexo e morte, não cessa de fazer teopoética. O reconhecimento da excelência de sua escrita glorifica as letras e a fé de todos aqueles e aquelas que, lutando com a finitude e a fragilidade de sua existência, creem na beleza que consiste em invocar a todo momento o mistério maior com o nome de Abba-Pai.


Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados” (Editora PUC-Rio/Vozes), entre outros livros.

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