ARTIGOS

In extremis

Por ADHEMAR BAHADIAN

Publicado em 09/07/2024 às 10:34

Alterado em 09/07/2024 às 10:34

A França da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”; a França dos “Direitos Humanos”; Paris, que teve seu solo pisado pela bota nazista, fez ontem, num domingo de julho - um mês de profundas ressonâncias em sua história - na Praça da República, um manifesto universal contra o extremismo.

Um “chega para lá” no quase meio século de uma ideologia que jogou o Ocidente no maior impasse humanitário, social e econômico desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Engana-se a extrema esquerda, assim como a extrema direita, se lerem nos resultados da votação de ontem um endosso ou uma promessa de que na próxima curva do vento se encontrará o pote de ouro do arco-íris.

A miopia ou até mesmo a cegueira não permitem nem inocência nem malícia. O que Paris nos disse ontem em alto e bom som foi um afinadíssimo NÃO.

NÃO aos extremismos, ainda que disfarçados em mandamentos quase teocráticos como os que se instalaram com a ideologia de um neoliberalismo hobbesiano em que o homem se transforma no lobo sanguinário, a mercancia se auto diviniza e golpeia os mecanismos históricos de proteção contra o abuso econômico. E acolhe sorridente a malandragem sorrateira.

Está a maior regressão do século XX a espraiar-se pelo século XXI e a trazer em seu bojo, inevitavelmente, os fantasmas do nazismo, do fascismo, vencidos por rios de sangue humano, inclusive de brasileiros, que marcharam à Itália a reforçar os aliados e até hoje são lembrados, com carinho, pela população de Pistoia, dentre outras cidades. Eu vi.

E será infantilidade ou malícia política não perceber que, assim como a França, o Reino-Unido, pela força do voto, desnudou a infame observação de Margareth Thatcher de que a sociedade é uma abstração e, em parceria com Ronald Reagan, empurraram goela abaixo do Ocidente o purgante cujo efeito estamos a ver num Estados Unidos da América que nos amedronta a todos pelas guerras que desenvolve em nome de uma paz sempre contaminada de um destino tão manifesto quanto intimidador.

Meio século de neoliberalismo nos leva “in extremis” a regressões estapafúrdias em que a violência totalitária se alinha com a supressão das liberdades e direitos fundamentais estabelecidos em nossa Constituição de 1988, de mescla com uma intolerância religiosa alheia a nosso sincretismo histórico.

Desta ideologia decanta-se uma rapina em nome de um modernismo capenga avesso à educação universal de qualidade e à saúde pública, tingida inclusive pela ignorância irresponsável com nossos filhos, evidente na queda vergonhosa de vacinação infantil em nosso país.

A situação patética que estamos a ver nos Estados Unidos da América, em que todas as suas históricas e invejadas qualidades - Constituição de poucos artigos; Suprema Corte inatacável - são hoje fontes de temor e incapazes de tornarem inelegível um rematado vírus ambulante a ameaçar a maior Democracia ocidental com o espectro de uma ditadura. Exagero? Tomara que sim. Adoraria estar errado.

No Reino Unido, os mosqueteiros da senhora arquiduquesa Thatcher entregam o país aos frangalhos. Fora da União Europeia, com o orgulho nacional abatido, a máquina de saúde pública avariada, uma política externa que confunde relação preferencial com subordinação irrestrita aos Estados Unidos.

Sobram apenas- e olhe lá- a pontualidade do Big-Ben e as sempre eternas lições de Shakespeare, a nos fazerem falta enorme nesses tempos de Reis Lear abobalhados. Incapazes de saber que, às vezes, a força mais nobre é reconhecer a própria fraqueza.

O inescapável resultado das eleições em Paris, Londres e até mesmo no Irã ressalta a disjuntiva entre morticínio e civilização. Temos todos que sentar às mesas de negociação e delas só sair quando se tenha garantido pelo menos três coisas: Fraternidade. Igualdade. Liberdade.

Se é para sermos saudosistas, sejamos igualmente inteligentes. Neste mundo, por paradoxal que pareça, a principal linha divisória entre barbárie e civilização é a diplomacia. E neste ponto, reconheçamos sem medo, temos enormes vantagens.

A começar por nosso presidente da República, talvez o único estadista mundial a ser convidado para qualquer mesa de negociação relevante. Qual outro seria? Bibi? Milei?

*Embaixador aposentado

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