MEIO AMBIENTE
O potencial dos biocréditos na bioeconomia - ilustração prática: a criação de mecanismos de créditos de polinização - III
Por RITA MARIA SCARPONI
Publicado em 04/11/2025 às 15:53
Alterado em 04/11/2025 às 15:53
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Em continuidade aos estudos sobre o potencial dos biocréditos na bioeconomia, este artigo aprofunda-se na valoração de um serviço ecossistêmico específico, os serviços de polinização, e discute os desafios e perspectivas para a criação de mecanismos de créditos de polinização (“Pollinator Credits”).
A economia da polinização: da colmeia aos biocréditos - Valoração de um serviço ecossistêmico crítico
Aprofundando a discussão sobre os biocréditos, é fundamental examinar a valoração de serviços ecossistêmicos específicos que, embora não se traduzam em créditos transacionáveis diretos como os de carbono, representam um campo fértil para o desenvolvimento de mecanismos inovadores.
Conforme brevemente introduzido na Parte I, a valorização dos serviços de polinização exemplifica essa complexidade e potencial, inserindo-se nas categorias mais amplas de serviços ecossistêmicos ou de créditos de biodiversidade relacionados à conservação de polinizadores, com ênfase na valorização intrínseca e extrínseca dos ecossistemas saudáveis que sustentam a apicultura e os serviços de polinização, e não em um mercado amplo e direto de créditos de mel.
A essência da polinização: Um serviço ecossistêmico indispensável
A polinização realizada por abelhas, borboletas, morcegos, aves e outros insetos é um serviço ecossistêmico de valor inestimável, essencial à produção de alimentos - estima-se que cerca de 75% das culturas alimentares globais dependam, em alguma medida, de polinizadores - e à manutenção da biodiversidade em ecossistemas naturais. Sem polinizadores eficientes, a produtividade agrícola global declinaria drasticamente, e a recuperação de florestas, campos e outras formações vegetais seria severamente comprometida.
Projetos que visam restaurar e proteger “habitats” de polinizadores, como a criação de campos de flores silvestres, o manejo sustentável de florestas nativas e a introdução de sistemas agrícolas que integrem práticas amigáveis aos polinizadores (p. ex., agroflorestas), beneficiam diretamente a biodiversidade e geram créditos indiretos, que podem ser financiados por meio de mecanismos de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), conforme já abordado nas Partes I e II, como um alicerce para o reconhecimento do valor da biodiversidade no Brasil. O conceito de créditos de polinização está mais alinhado a um PSA, onde agricultores ou conservacionistas são remunerados por manterem ambientes que beneficiam os polinizadores, gerando benefícios indiretos para a agricultura, a economia local e a biodiversidade em geral.
Mecanismos de valoração e incentivo à conservação de polinizadores
Em diversas partes do mundo, a crescente consciência sobre o declínio dos polinizadores tem impulsionado a criação de programas governamentais e iniciativas privadas que oferecem incentivos financeiros e reconhecimento a agricultores e proprietários de terras que adotam práticas benéficas.
Programas governamentais internacionais
Como citado na Parte I, o “United States Department of Agriculture” (USDA), dos EUA, tem sido um pioneiro na implementação de programas que incentivam a conservação de polinizadores, com destaque ao “Environmental Quality Incentives Program” (EQIP) e ao “Conservation Reserve Program” (CRP), administrados pelo Serviço de Conservação de Recursos Naturais (NRCS). Estes programas oferecem assistência técnica e incentivos financeiros a agricultores para implantarem práticas de conservação, como o plantio de flores nativas, a criação de corredores ecológicos e a redução do uso de pesticidas que prejudicar os polinizadores. Milhões de acres de terras agrícolas foram convertidos em “habitats” para a vida selvagem, incluindo polinizadores, por meio de tais programas, demonstrando um impacto significativo na recuperação de populações.
Na União Europeia, a “Common Agricultural Policy” (CAP) - Política Agrícola Comum (PAC) incorporou os “eco-schemes” (esquemas ecológicos), igualmente referenciados na Parte I, que constituem incentivos financeiros que recompensam os agricultores por adotarem práticas voluntárias benéficas ao clima e ao ambiente, incluindo a promoção da biodiversidade mediante a criação de faixas de flores, manutenção de margens de campo e rotação de culturas que fornecem recursos para polinizadores.
Há, ainda, iniciativas da sociedade civil, como o “Xerces Society for Invertebrate Conservation” (EUA), um grupo da sociedade civil que desempenha um relevante papel, ao desenvolver projetos de restauração de “habitats” que, ao aumentar as populações de abelhas e outros polinizadores, geram benefícios ecossistêmicos que poderiam ser quantificados e valorados em um futuro mercado de biocréditos. Sua expertise em ciência e implantação prática é fundamental.
A concessão de certificações e selos de sustentabilidade é outro ponto relevante. Empresas do setor de alimentos e bebidas, por exemplo, buscam certificações de sustentabilidade que incluem critérios relacionados à proteção de polinizadores. Esses selos, como o “Bee-Friendly Farming” (EUA/Canadá), reconhecem e promovem práticas agrícolas que apoiam os polinizadores, incentivando a adoção de métodos sustentáveis e conferindo valor de mercado e acesso a consumidores específicos, atuando como um incentivo indireto para a conservação.
Cenário brasileiro para a valoração da polinização
No Brasil, Programas de Serviços Ambientais (PSA) que se dedicam especificamente à polinização ainda são incipientes. Contudo, estudos, como o do Biota Síntese - Núcleo de Análise e Síntese de Soluções Baseadas na Natureza, no Estado de São Paulo, já contemplam e analisam o potencial do serviço ecossistêmico de polinização, mapeando as oportunidades para sua valoração e inclusão em esquemas de pagamento, alinhando-se com as discussões sobre a PNPSA, e suas potencialidades para biocréditos, conforme detalhado na Parte II.
Desafios na quantificação e a construção dos créditos e polinização
Apesar do reconhecimento crescente de sua importância, a quantificação precisa do valor econômico da polinização e o desenvolvimento de metodologias à criação de um mercado de créditos de polinização, similar aos mercados de carbono, enfrentam desafios significativos. Estes desafios espelham, e até amplificam, as complexidades gerais na mensuração de biodiversidade, já abordadas na Parte II ao discutir as limitações da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA) - Lei Federal nº 14.119, de 13 de janeiro de 2021 - e a expertise em Monitoramento, Relato e Verificação (MRV).
A polinização envolve uma miríade de espécies de polinizadores, cada uma com seus próprios requisitos de “habitat” e eficiência. O impacto de uma intervenção na biodiversidade de polinizadores pode ser difícil de isolar e medir em termos de benefício econômico direto para uma cultura específica: a chamada “complexidade biológica”.
As variações espaciais e temporais advêm das variações dos serviços de polinização conforme a época do ano, a proximidade de “habitats” naturais e a intensidade das práticas agrícolas. Desenvolver métricas que capturem essa dinamicidade é complexo.
Outro aspecto a enfrentar e a definir refere-se à fungibilidade limitada, pois, diferentemente de uma tonelada de carbono, que é conceitualmente igual em qualquer lugar, um crédito de polinização pode ter valor e impactos muito diferentes dependendo do ecossistema, das espécies envolvidas e da cultura beneficiada, o que dificulta a criação de um mercado fungível em larga escala, ressaltando o debate entre fungibilidade e unicidade de biocréditos discutido na Parte II.
Há esforços de metodologia por meio de instituições de pesquisa e empresas que estão trabalhando na quantificação do valor econômico da polinização e no desenvolvimento de metodologias para a criação de créditos de polinização. O objetivo é que empresas ou produtores que se beneficiam da polinização, mas não contribuem para seu fomento, possam compensar sua “pegada” ecológica apoiando projetos de conservação de polinizadores em outros locais. O resultado benéfico desejado é que a criação de um mercado de créditos incentivaria investimentos diretos na conservação e restauração de “habitats” de polinizadores.
No entanto, no âmbito acadêmico e de ONGs, discute-se a possibilidade de desenvolvimento de metodologias para quantificar os benefícios da polinização e convertê-los em créditos transacionáveis, mas isto ainda é incipiente e mais conceitual do que prático no mercado em grande escala (“Pollinator Credits”).
Cenário global e movimentações contrárias: impactos na conservação dos polinizadores
O desenvolvimento dos mecanismos de valoração e mercado é influenciado pelo contexto geopolítico e econômico. No cenário internacional recente, destaca-se a presença de movimentações contrárias aos acordos climáticos e a uma governança ambiental mais robusta, aspecto já pontuado na Parte I.
Mudanças em administrações governamentais, como as observadas nos Estados Unidos, podem levar a medidas de desregulamentação ambiental e ao fomento à produção de combustíveis fósseis, o que pode incluir a revogação de regulamentos de proteção ambiental (p. ex., estabelecidos pela “United States Environmental Protection Agency” - EPA), a flexibilização de padrões de emissões e a abertura de mais áreas para perfuração de petróleo e gás. Tais ações podem reverter avanços na qualidade do ar e da água, intensificar as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs) e, por extensão, impactar negativamente a saúde dos ecossistemas e, consequentemente, dos polinizadores.
O crescimento de movimentos anti-ESG (“Environmental, Social, and Governance”) e a suspensão de iniciativas como o “Net Zero Asset Managers” e a “Net-Zero Banking Alliance” (NZBA) podem gerar desafios para as políticas de financiamento climático internacional e para iniciativas climáticas globais e domésticas. Conforme discutido na Parte I, isso se traduz em potenciais prejuízos à cooperação internacional em questões ambientais e na redução da demanda corporativa por investimentos em conservação, incluindo a proteção de polinizadores.
Essas tendências globais criam um ambiente de incerteza, o que pode desacelerar o ritmo de implementação de políticas de descarbonização, o corte de financiamento para iniciativas climáticas e de biodiversidade, e a cooperação internacional em temas ambientais, afetando diretamente a capacidade de financiar a conservação dos polinizadores.
Perspectivas futuras: integração e adaptação
A tendência geral é de que o valor dos serviços ecossistêmicos, incluindo a polinização, seja cada vez mais integrado às cadeias de valor e aos mecanismos de mercado. Apesar dos desafios na quantificação e dos ventos contrários descritos, o desenvolvimento de mercados de créditos de polinização representa uma fronteira promissora ao financiamento da conservação e à promoção de práticas que assegurem a vitalidade dos guardiões da produção de alimentos. A capacidade de inovar em metodologias e adaptar-se aos cenários políticos e econômicos será vital para capitalizar este potencial.
Considerações finais
A discussão sobre biocréditos de mel de abelhas transcende a produção do mel em si, focando na valoração dos ecossistemas saudáveis que permitem a apicultura e garantem os serviços de polinização.
Projetos que visam à conservação de abelhas e seus “habitats” poderiam gerar créditos sob um “framework” mais amplo de biodiversidade ou serviços ecossistêmicos, atraindo investimento de empresas que buscam neutralizar ou compensar seu impacto ambiental.
A capacidade das iniciativas de base e da adaptação aos cenários políticos e econômicos são essenciais ao avanço da valoração e proteção desses serviços ecossistêmicos fundamentais, reiterando a necessidade de um arcabouço regulatório robusto para a bioeconomia no Brasil.
Rita Maria Scarponi. Advogada especializada em direito societário e administrativo, em regulação, em mercados financeiro e de capitais e em meio ambiente. Integrante de equipe multidisciplinar para a concretização de planos, projetos e iniciativas de descarbonização e de desenvolvimento econômico, na chamada Bioeconomia, a agentes dos setores público e privado. Pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE.