MEIO AMBIENTE

A proposta de criação da AGECAR-RJ: Contribuições ao necessário debate

Por RITA MARIA SCARPONI

Publicado em 30/10/2025 às 12:13

Alterado em 30/10/2025 às 12:13

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A recente proposta de projeto de lei que visa instituir a Agência Estadual de Crédito de Carbono da Economia Azul do Rio de Janeiro (AGECAR-RJ), como autarquia especial vinculada ao gabinete do governador, aparenta refletir uma visão de vanguarda na governança ambiental. Embora seus objetivos de regular, certificar e garantir a aposentadoria de créditos de carbono gerados no Estado, com foco na economia azul e no mercado voluntário, sejam meritórios, uma análise jurídica aprofundada levanta questionamentos sobre a compatibilidade da iniciativa com o arcabouço legal federal vigente.

De acordo com o projeto de lei, busca-se conceber a AGECAR-RJ com um modelo de autonomia orçamentária, custeada por taxas e serviços especializados. Suas atribuições abrangeriam desde a normatização e fiscalização de projetos de redução de Gases de Efeito Estufa (GEEs) na economia azul até a operação de um sistema estadual de registro de créditos de carbono, além de articular recursos e mecanismos de financiamento climático. Contudo, a amplitude dessas funções suscita preocupações quanto a uma possível sobreposição com as competências e estruturas já estabelecidas em nível federal.

Um dos principais desafios jurídicos reside na repartição de competências da CRFB, cujo art. 22 confere à União a competência privativa para legislar sobre direito civil e comercial. Considerando que os créditos de carbono são ativos intangíveis com valor econômico, passíveis de negociação e transferência, sua disciplina se enquadra diretamente neste campo.

A criação de uma agência estadual com poder para regular tais ativos poderia gerar uma fragmentação normativa, o que não se alinha com a necessidade de uniformidade e segurança jurídica que um mercado dessa natureza exige. Este cenário poderá criar incertezas para investidores e potenciais obstáculos à circulação desses ativos.

Além disso, o mercado de créditos de carbono, com suas transações de grande vulto e operações internacionais, está intrinsicamente ligado a operações financeiras e comerciais transfronteiriças, incluindo política de crédito, câmbio e comércio exterior - matérias de competência privativa da União. A atuação de uma agência estadual na regulamentação desses aspectos poderia desafiar a uniformidade necessária ao regular funcionamento desses mercados, suscitando atritos e ineficiências.

Mesmo em relação ao foco na economia azul - que abrange energias renováveis oceânicas, infraestrutura portuária, petróleo e gás e pesca e aquicultura -, a proposta tangencia áreas de competência privativa da União, como energia e navegação marítima e portos. Uma regulamentação estadual do mercado de carbono nesses setores, constitucionalmente federais, poderia resultar em regras inconsistentes e na desarticulação de políticas públicas nacionais.

Um dos pontos mais críticos para a discussão sobre a criação da AGECAR-RJ é a promulgação da Lei Federal nº 15.042, de 11 de dezembro de 2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Esta legislação estabelece um mercado abrangente, concebido para unificar, normatizar e gerenciar as iniciativas de redução de emissões e a negociação de créditos de carbono.

Com a entrada em vigor do SBCE, e com a recente edição do Decreto Federal nº 12.677, de 15 de outubro de 2025, que criou a Secretaria Extraordinária do Mercado de Carbono no Ministério da Fazenda, estabelecendo, assim, o órgão que gerenciará temporariamente o SBCE, com o objetivo de dar início à implantação do mercado regulado de carbono no país, funcionando por meio do sistema “cap-and-trade”, onde um limite de emissões é estabelecido para setores da economia e as empresas negociam permissões para emitir GEEs, muitas das funções de regulação, certificação, registro, rastreamento e garantia da aposentadoria dos créditos de carbono, que a criação da AGECAR-RJ almeja, estão sob a coordenação federal.

A pretensão de que a agência estadual validaria o mercado de créditos de carbono ou promoveria sua harmonização com o SBCE encontra um obstáculo na ausência de previsão legal para tal integração na Lei nº 15.042, de 2024, que não contempla essa possibilidade, e sua regulamentação não pode extrapolar seus limites – “nec plus ultra” -, o que pode tornar inviável essa articulação e o almejado protagonismo estadual.

Nesse contexto, a existência do SBCE levanta questionamentos sobre a real necessidade e os potenciais desafios que a criação de agências estaduais, como a AGECAR-RJ, poderia apresentar à coerência e à eficiência do sistema nacional de comércio de emissões. Uma agência estadual com critérios e processos distintos poderia gerar incertezas, dificultar a fungibilidade dos créditos - essencial para qualquer mercado - e, potencialmente, afetar a credibilidade do mercado brasileiro de carbono como um todo, com riscos de insegurança jurídica, elevação de barreiras ao investimento e aumento dos custos de transação.

Os diversos setores da economia azul já são regulados por um conjunto robusto de legislação e órgãos federais. De acordo com a Lei Federal nº 12.815, de 5 de junho de 2013, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) fiscaliza o setor de óleo e gás; a Lei Federal nº 12.815, de 5 de junho de 2013, legisla sobre a infraestrutura portuária; e a Lei nº Federal 11.959, de 29 de junho de 2009, rege a pesca e aquicultura.

Para a gestão costeira e marinha, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC (Lei Federal nº 7.661, de 16 de maio de 1988) e a Política Nacional do Meio Ambiente - PNMA (Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981) fornecem o arcabouço, com atuação de órgãos como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, cujas competências são definidas pela Lei Federal nº 14.600, de 19 de junho de 2023, e exercem funções essenciais de fiscalização, licenciamento e gestão de unidades de conservação marinhas e costeiras. Uma nova agência estadual para normatizar, registrar e fomentar atividades na economia azul, em setores já regulados, duplicaria atribuições federais, mais uma vez gerando conflitos e ineficiência.

As justificativas apresentadas para a criação AGECAR-RJ, como a atração de investimentos e a geração de empregos, são objetivos válidos. Contudo, é importante considerar que tais resultados podem ser alcançados e otimizados por meio de políticas de desenvolvimento econômico e ambiental existentes e por mecanismos federais robustos, a exemplo da ainda chamada Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal nº 14.133 de 1º de abril de 2021), que oferece instrumentos para parcerias público-privadas. Um ambiente de negócios atrativo caracteriza-se pela segurança jurídica e um arcabouço regulatório unificado e previsível, qualidades que poderiam ser desafiadas pela proliferação de agências estaduais.

Ademais, exemplos citados como precedentes subnacionais - como o SisREDD+ no Mato Grosso e a estratégia Pará Carbono Neutro - configuram programas e políticas jurisdicionais de REDD+, distinguem-se da proposta de criar uma agência ou autarquia estadual com um escopo regulatório que poderia se sobrepor a um mercado nacional já em formação.

A natureza jurídica de autarquia especial para a AGECAR-RJ também é um ponto de discussão. Alternativas como a criação de uma fundação, fiscalizada pelo Ministério Público, poderiam, em tese, oferecer um modelo com maior controle, credibilidade e transparência. No entanto, essa ponderação sobre a forma jurídica, embora relevante, torna-se secundária diante dos questionamentos sobre a necessidade e o enquadramento constitucional da entidade estadual no sistema regulatório existente.

Em síntese, a visão de um Rio de Janeiro com uma economia azul pujante e um mercado de carbono ativo é um objetivo digno. Contudo, a criação da AGECAR-RJ, nos moldes propostos, levanta importantes questionamentos acerca de sua necessidade, constitucionalidade e eficácia e os potenciais desafios que pode gerar.

O Brasil dispõe, por meio da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) - Lei Federal nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009 -, do recém-instituído SBCE e de leis específicas para os diversos setores da economia azul, dos instrumentos e das instituições capazes de normatizar, registrar, fomentar e integrar o mercado de carbono e as atividades econômicas sustentáveis. O caminho mais prudente e eficaz para o progresso reside na integração dos esforços estaduais aos marcos federais, fortalecendo as estruturas existentes e promovendo a cooperação, garantindo segurança jurídica, eficiência e coerência de um mercado nacional de carbono unificado, essencial ao protagonismo do Brasil na agenda global de descarbonização.

A inovação na governança climática deve priorizar a sinergia e a clareza, em detrimento da fragmentação regulatória e de potenciais discussões de competências. Este texto, com base em uma análise construtiva, busca oferecer contribuições ao necessário debate sobre a criação AGECAR-RJ, visando auxiliar na construção de um arcabouço regulatório coeso e eficaz, e na prevenção de potenciais desafios jurídicos e operacionais.


Rita Maria Scarponi. Advogada especializada em direito societário e administrativo, em regulação, em mercados financeiro e de capitais e em meio ambiente. Integrante de equipe multidisciplinar para a concretização de planos, projetos e iniciativas de descarbonização e de desenvolvimento econômico, na chamada Bioeconomia, a agentes dos setores público e privado. Pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE.

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