MENTE SÃ
'Precisamos aprender a lidar com a incerteza'
Por CAL GOMES
Publicado em 15/08/2025 às 11:42
Alterado em 15/08/2025 às 12:32

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As imagens embaçadas e envelhecidas do interior de uma sala de aula da faculdade de comunicação de Botafogo, em uma noite qualquer da metade dos anos 1980, surgiram em minha memória quando eu preparava as perguntas para essa entrevista com a psicoterapeuta Berenice Kuenerz. Naquele ambiente esfumaçado, onde os ventiladores de teto giravam velozmente e tentavam nos refrescar e amenizar o cheiro nauseante dos cigarros acesos, dezenas de jovens estudantes se apertavam, quase que se empilhando, para assistir a mais uma das concorridas aulas de Sociologia do filósofo Carlos Henrique Escobar.
As lembranças de Escobar sempre surgem para mim nessas 04 décadas que se passaram e que me afastaram de estar, outras vezes, após minha formatura, com o meu saudoso mestre, que nos deixou em 2023. Como algumas dessas doces lembranças que vieram me visitar, na semana passada, quando a sua imagem impressionante e cativante, de voz muito baixa, quase inaudível, em uma aula sobre o psicanalista francês Jacques Lacan, nos contou, no silêncio respeitoso e atento dos alunos, sobre o dia em que ele sentiu o seu momento pessoal, muito especial, de plena felicidade. Escobar confidenciou naquela aula que ao chegar em casa, no início da noite, cansado depois de um dia de trabalho, encontrou Ruth Escobar, sua companheira da época, grávida, repousando, placidamente, no sofá. Em seguida, encheu a banheira, colocou uma música suave para tocar e, durante boa parte da noite, ficou ali, deitado sob e sobre a água quente, esvaziando a mente e sentindo apenas o seu corpo relaxar e, segundo ele, experimentando um estado profundo de paz de espírito e prazer que, até aquele dia, ainda não havia sentido.
Carlos Henrique Escobar surgiu em minhas memórias, nesse seu momento pessoal e especial, exatamente porque o seu relato que envolve felicidade, paz de espírito e relaxamento da mente e do corpo, é um assunto que a nossa entrevistada, Berenice Kuenerz, formada em psicologia, gaúcha de Porto Alegre, que vive no Rio de Janeiro há anos, domina plenamente e divide todo esse conhecimento em palestras, workshops, e em sua clínica, como mentora de alta performance em gestão emocional para líderes e como instrutora em Mindfulness.
Abaixo, a entrevista especial que a psicoterapeuta concedeu ao JORNAL DO BRASIL.
A sociedade brasileira, o Congresso e o Governo Federal estão debatendo nos últimos meses uma pauta muito importante e também muito polêmica, que é a sobre o fim da escala 6x1, que interessa trabalhadores e empresários. Nos países nórdicos e em alguns outros, membros da União Europeia, a carga semanal de trabalho foi bem reduzida nos últimos anos. Em suas palestras, workshops e nas mensagens que publica em suas redes sociais, você analisa as questões que envolvem o mental e o emocional da sociedade – coletivo e individual – e a correria, pressa, estresse, do dia a dia. Como é possível amenizar toda essas pressões que enfrentam trabalhadores, empresários, executivos, com essa carga de trabalho e sem muito tempo disponível para o descanso e o lazer?
Acredito que essa lei contribuirá para a saúde mental, bem-estar e felicidade das pessoas. Mas quero ressaltar que dispor de mais tempo cronológico não garante saber desfrutá-lo para o descanso, reorganização mental/emocional, bem-estar e felicidade. Acompanhando pessoas por 40 anos em minha clínica, constato que existem pressões oriundas de conflitos internos que podem impedir o aproveitamento de um tempo disponível. Pense em um dia em que não acordou bem consigo mesmo, e ao final de um fim de semana se dá conta de que o tempo passou e não o usou como havia programado, porque sua mente rodopiou em divagações, preocupações ou lembranças desagradáveis.
Você também tem debatido e analisado o "tempo" cronológico, e até filosófico, nessa questão da pressa que a sociedade e o indivíduo enfrentam diariamente. A importância de saber utilizar e viver o "momento presente". Pode nos falar sobre esse tema?
Penso que treinar a mente para estar no momento presente seja uma das maiores conquistas em termos de desenvolvimento e empoderamento pessoal. A mente tende naturalmente a ir para o passado e o futuro como uma forma de nos proteger – um mecanismo de defesa que surgiu em nossa evolução. Porém, nos momentos em que estamos, de fato, presentes, é quando conseguimos utilizar e manifestar todo o potencial que possuímos. Lembre-se de um momento em que, sentindo-se inseguro diante de alguém ou de um trabalho, não conseguia dar o seu melhor, porque simplesmente não estava presente. Quando estamos ansiosos e inseguros, não existe possibilidade de "estado presença".
E como é possível o indivíduo utilizar melhor esse "tempo presente" quando a questão da carga semanal de trabalho desgastante o deixa impossibilitado? A impressão que se tem é que ele só consegue viver o "tempo passado", em suas lembranças, e as projeções para o seu "tempo futuro".
Acredito que isso se deve, prioritariamente, ao fato de a mente estar habituada a transitar entre passado e futuro, mais do que pela carga de trabalho. Uma mente focada no momento presente, vai estar focada na tarefa que está desempenhando. Embora, essa mente possa ficar extenuada ao final de muitas horas.
E os estudantes e as donas-de-casa também sofrem com essas pressões que limitam o seu tempo presente, não?
Sim, evidentemente. Uma prática que ensino e recomendo é a de pequenas pausas ao longo do dia, que podem ser de 5 a 10 minutos, para tomar um café, ouvir uma música, desligar o celular, tirar o foco do computador, e retornar ao trabalho. Inclusive, no âmbito corporativo, a Lei n.º 14.831/2024 instituiu o “Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental” para empresas que adotem práticas efetivas de cuidado com a saúde mental e bem-estar dos colaboradores. Eu tenho dado workshops em empresas ensinando práticas e ferramentas que auxiliam no treinamento mental/emocional para conquista de bem-estar e efetividade.
Você visitou o Japão e a China recentemente e esteve na Índia em três ocasiões, e tem conduzido para as suas palestras pontos da filosofia oriental que envolvem equilíbrio emocional, mental e físico. As sociedades desses países possuem um cotidiano que impõe também muita pressão diária, principalmente, nos centros comerciais e industriais. Acha que elas conseguem se sair melhor nesse equilíbrio do que as dos países ocidentais?
Sim. Japão e China têm alto nível de exigência. O que pode ajudá-los em seus desempenhos é uma cultura milenar no que se refere a práticas de equilíbrio da mente, foco e disciplina. Acredito que, nesses países, o bem-estar esteja mais ligado à realização e menos a prazer e lazer.
Meses atrás reli trechos de um livro que me foi indicado pelo filósofo Carlos Henrique Escobar, que foi meu professor nos anos de 1980, sobre o psicanalista francês Jacques Lacan e sua "teoria do espelho – estágio do espelho" como a base fundadora da psicologia lacaniana, em que tudo que existe na sociedade se comporta como espelho. Lacan teorizou que os indivíduos tentam construir o lugar deles na sociedade a partir das imagens dos “outros” que os rodeiam. E cito mais dois expoentes da psicanálise clássica, que são Carl Jung, que afirmou que tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos. E Sigmund Freud: "Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons". E analisando esses pensamentos sem me aprofundar nos temas, fiquei pensando na questão das redes sociais de hoje em dia e como as pessoas poderiam estar contidas nesses temas, nas causas e nos efeitos. Como você analisa essas abordagens tendo o usuário das redes sociais como exemplos e como eles, nós, poderíamos utilizá-las sem ser afetados tão fortemente em nosso mental, físico e emocional?
Existe mesmo uma relação bastante interessante entre a Teoria do Espelho de Lacan e o comportamento nas redes sociais. Criamos e projetamos imagens de nós mesmos através de selfies e vídeos, buscando validação e aprovação através de curtidas e comentários. Gostaria de trazer ideias de dois autores contemporâneos que têm explorado essa questão. Zygmunt Bauman, que descreve a modernidade como líquida, ou seja, tudo é volátil, passageiro e instável, inclusive a identidade. Nas redes sociais estamos sempre nos “editando” para sermos aceitos, amados ou reconhecidos. E Byung-Chul Han, autor do livro “A sociedade do Cansaço”, que fala sobre vivermos em uma época em que nos expomos constantemente nas redes sociais, e isso cria um “sujeito de desempenho”, que se sente obrigado a estar sempre produtivo, feliz, motivado e eficiente o tempo todo, o que leva a cansaço, ansiedade e ausência de um verdadeiro contato interior. Utilizar as redes sociais sem estar submetido e afetado negativamente por elas, implica em fazer o caminho de retorno a nossa interioridade. Isso significa conexão verdadeira consigo mesmo. Estamos nos perdendo de nós mesmos. Temos que voltar à pergunta primordial: Quem sou eu?
Em um episódio recente do seu podcast “Chá com Consciência”, você fala sobre a importância do exercício da "gratidão" própria, de si mesma, sem fazer uma análise do comportamento de um indivíduo para o outro. Mas você entende que, atualmente, em nossa sociedade, as pessoas não estão cultivando a gratidão para com o outro?
A prática da gratidão tem sido amplamente estudada cientificamente pela psicologia positiva e a neurociência, e os resultados são consistentes no sentido de benefícios reais para o bem-estar mental, emocional e físico. Temos naturalmente a tendência a focar na falta, na carência, no problema, no obstáculo. A prática da gratidão começa a habituar a mente a focar e reconhecer o que possuímos, desde coisas pequenas e simples, como também o presente por estarmos existindo e tendo a oportunidade de fazer escolhas que construam a vida que queremos, por todas as pessoas que nos apoiam, por tudo que a vida nos traz de bom e desafiante que nos ajuda a crescer. A mente começa a se habituar a focar no positivo, mudando, inclusive, as conexões neurais em nosso cérebro. Pesquisas com ressonância magnética mostram que pessoas que praticam gratidão tem mais atividade no córtex pré-frontal associada a tomada de decisões, menos ativação da amígdala ligada a medo e stress e mais liberação de dopamina e serotonina, neurotransmissores do prazer e bem-estar.
Durante os anos de 1970 e 1980, muros e paredes do Rio de Janeiro, principalmente no centro da cidade, foram sistematicamente utilizados por um personagem denominado "Profeta Gentileza" com mensagens escritas a tintas sobre a importância de cultivar a gentileza. Anos se passaram e o que parece nítido é que esses tipos de mensagens, enviadas por ele e por tantos outros "profetas", não foram absorvidas e seguidas. Como você analisa esse comportamento do coletivo, e do individual, de não praticar a delicadeza e a gentileza?
Vamos pegar o exemplo do Japão, onde estive recentemente, que tem uma forte cultura de gentileza e delicadeza. Essa cultura aparece nas palavras, nos gestual, na decoração, na comida. É valorizada e praticada por centenas de anos, passada de geração a geração, e que está em sua estrutura cultural. A mensagem do “Profeta Gentileza” foi importante, mas não suficiente para passar a fazer parte da cultura. Porém, gentileza também pode ser uma prática, com grande benefício em modelagem da mente, e melhoria nos relacionamentos. Quando começamos a colocar nosso foco em sermos gentis e delicados, gradativamente vamos nos tornando menos reativos, defensivos e impulsivos, e mais abertos, receptivos e afetivos para com o outro.
Você tem ministrado palestras e workshops para empresários e executivos. E o tema liderança que envolve não só a eles, mas também o indivíduo no seu dia a dia, acaba por se somar a "autoliderança". Como poderia incluir esse exercício, como sugestão, para políticos e administradores públicos, por exemplo?
Qualquer líder com excelência, antes de liderar outros, precisa liderar a si mesmo. A isso chamamos autoliderança. Autoliderança envolve autoconhecimento para poder perceber, entender e gerenciar as próprias emoções, e com isso ter ações e decisões conscientes, e não impulsivas ou automáticas. A pergunta, a meu ver, importante a ser feita é: quanto um líder, CEO, político ou administrador público está consciente de que uma liderança de excelência não está baseada no uso do poder, mas sim na qualidade do exemplo que passa para seus liderados. Baseada na intenção e propósito consciente de criar as condições para que seus liderados cresçam, e se desenvolvam levando avante sua missão.
Após o término daqueles longos meses de pandemia, o que você observou de forma positiva e negativa no comportamento das pessoas na rotina de suas vidas?
Durante a pandemia havia uma expectativa em relação a uma transformação. Penso que ocorreu em parte. O ritmo e método de trabalho mudou na maioria das empresas, porque surgiu uma nova mentalidade em relação ao home office. Isso abriu novas possibilidades de organização na vida pessoal, e ampliou o horizonte em relação à saída de trabalhos formais. Quero colocar um aspecto que foi muito falado durante a pandemia e me parece relevante considerar no mundo pós pandemia: o inimaginável pode acontecer. Precisamos aprender a lidar com a incerteza. Na pandemia o mundo deixou de ser um lugar previsível. Existe aqui uma lição extraída das surpresas: o mundo é surpreendente. Precisamos nos fortalecer emocionalmente para lidar com essa realidade.